Sensemaking, Big Unknowns e Growth
O artigo de hoje é todo sobre Sensemaking. Sensemaking nada mais é do que o processo de encontrar um significado em experiências coletivas. É o processo de racionalizar coisas que fazem parte do inconsciente coletivo, como elas afetam nosso comportamento, nossas emoções e hábitos.
Pra entender melhor esse processo, a gente vai falar aqui da Coloplast, uma empresa dinamarquesa que é líder no mercado de soluções para ostomia, urologia, continência e tratamento de feridas. Eles definem a própria missão como ‘tornar melhor a vida de pessoas com necessidades íntimas de saúde’.
Ela foi criada em 1954, pela Elise Sørensen, uma enfermeira que viu a irmã se recuperando de uma ostomia. Na época, a única opção era usar uma bolsa de colostomia caseira, que vazava constantemente e, por isso, ela começou a se isolar socialmente por vergonha de sair de casa.
A Elise então desenvolveu uma bolsa com um anel adesivo pra que ela não saísse do lugar e vazasse. O negócio surgiu aí. Mais de 50 anos depois, a Coloplast era líder do mercado de produtos para cuidados médicos na Europa e foi considerada a empresa mais focada no paciente do mundo. Mas em 2008 a divisão de ostomia, a principal da empresa, tava estagnada, mesmo com investimentos gigantes em inovação e vendas.
Eles fizeram tudo que tá no manual de boas práticas de inovação: co-criação com o usuário, workshop de design-thinking, pesquisa com grupo focal… Nada dava certo. Os produtos novos não paravam de sair, mas não davam resultado.
Até que eles perceberam que não tinham entendido o mercado direito, mesmo com 50 anos liderando. Foi aí que surgiu o primeiro big unknown: Como encontrar novos jeitos de crescer?
Esse é o processo de cinco passos que a Coloplast seguiu pra isso:
Antes de entrar no Sensemaking de fato, um parênteses pra falar sobre as diferenças entre as ciências exatas e humanas. A gente tá acostumado a tratar nossos clientes como um grande conjunto de dados na tela do computador. Mas o problema é que as pessoas não podem ser vistas como parte de uma ciência exata. A gente toma atitudes que nem sempre são racionais ou conscientes. Tem coisa que a gente faz e nem nós mesmos conseguimos explicar. Mesmo assim, a gente insiste em procurar padrões e colocar as pessoas em caixinhas.
Essa é a abordagem das ciências exatas. Com a quantidade de informações que a gente tem dos nossos consumidores, é normal acreditar que isso é sempre preciso. Mas não é, e pior: na maioria dos casos não é. E é aí que entram as ciências humanas. Quando você pensa em ciências sociais, antropologia, filosofia, qual a primeira coisa que vem à sua mente?
Possivelmente é o estudo acadêmico, né? A gente enxerga essas áreas das ciências humanas até hoje como muito teóricas, pouquíssimo práticas no dia-a-dia de uma empresa. Mas isso tem mudado nos últimos anos e tem mudado rápido.
Os departamentos de marketing das gigantes da tecnologia como a Samsung, Microsoft e IBM, além de empresas como Adidas, Lego, Pfizer e P&G estão começando a mesclar as ciências exatas e humanas cada vez mais.
Um estudo da própria IBM mostrou que 80% das empresas do mundo entendem que o ambiente de negócios vai se tornar cada vez mais complexo, mas menos da metade tá preparada de fato pra esse aumento na complexidade.
O maior problema nesse gap de complexidade é justamente o não entendimento do comportamento do consumidor.
Conseguir insights de fato úteis sobre o consumidor é, então, o maior desafio para elas. Mas a abordagem da antropologia, por exemplo, pode ajudar nesse desafio. A antropologia examina as raízes do comportamento humano, a interação entre a nossa vida enquanto indivíduo e enquanto ser social, nossa cultura. Ela traz insights muito mais profundos e complexos do que a simples coleta de dados por cookies. Esse processo, que é o chamado sensemaking, mostra coisas muito sutis e inconscientes que podem ser fundamentais pro desenvolvimento de produtos, cultura organizacional e estratégia.
É a abordagem ideal pra resolver um big unknown como o da Coloplast.
O primeiro passo é repensar o problema como um fenômeno ou, em outras palavras, ver do ponto de vista da experiência humana.
Você então para de olhar pro mercado, produto ou consumidor da perspectiva da empresa e passa a tentar olhar pela perspectiva do cliente.
No caso da Coloplast, eles sabiam muito sobre os hábitos de compra dos clientes, mas pouquíssimo sobre a vida deles de fato. Como é ser um paciente colostomizado. Como isso afeta a percepção da sua própria imagem? Seu dia a dia? Como é um dia bom na vida do paciente? E como é um dia ruim?
A Coloplast pensava que sabia duas coisas sobre os pacientes: a primeira é que depois de dois anos da cirurgia, eles tavam com tudo sob controle e viviam suas vidas normalmente. A segunda é que eles deveriam focar em melhorar ponto a ponto as características de uma bolsa de ostomia. Obviamente, alguma coisa aí tava errada.
O segundo passo, então, é a coleta de dados.
E aqui a gente não tá falando de analytics e pesquisas tradicionais. Esses esquemas de coleta de dados massiva não funcionam nesses casos. É preciso viver a vida com os pacientes.
Aqui é importante chegar no estudo sem hipótese nenhuma pra contestar ou confirmar. A coleta dos dados não pode ser enviesada e os dados finais precisam ser crus, pessoais e vindos direto dos consumidores.
Esse tipo de abordagem acaba com a concepção de que os clientes são um grande conjunto de dados, estados de necessidade momentânea ou ocasiões. Os seus consumidores são pessoas, e não só as necessidades ou vontades delas.
Voltando pra Coloplast, eles mandaram cientistas sociais pra vários lugares do mundo. Esses cientistas passaram 2 dias convivendo com os pacientes ostomizados, observando suas relações com amigos e família e, mais importante, viram que eles ficavam presos em casa por causa da ansiedade e vergonha causadas pela sua condição. Eles passaram também um tempo com enfermeiras que cuidavam de pacientes ostomizados para entender como elas escolhiam os produtos utilizados para cuidar dos seus pacientes e quais eram as preocupações na hora de trocar a bolsa e as orientações passadas para os pacientes. Essas pesquisas foram entregues à Coloplast na forma de dados crus, organizados em vídeos, diários, fotos e anotações.
Pode parecer uma pesquisa caótica, mas para um pesquisador de humanas, que lida com a coleta de dados vindos de pessoas diariamente, não é. São pesquisadores que sabem identificar os temas chave na hora de conduzir um experimento como esse.
Pra Coloplast, essas questões eram:
- Como uma bolsa de ostomia impacta no dia a dia?
- Como um paciente planeja sua vida?
- Qual é a rotina de cuidado do paciente?
- Quais são as necessidades e desafios do paciente?
- Como pacientes, médicos e enfermeiros enxergam a qualidade do cuidado?
- Quais são os processos decisivos na hora de escolher produtos e acessórios?
Todas essas perguntas têm uma coisa em comum: coleta de dados e pesquisas tradicionais não conseguem responder nenhuma delas.
Com os dados em mãos e organizados, fica fácil entrar no terceiro passo: Definição de padrões.
Ao final da fase de coleta de dados, os pesquisadores tinham mais de 2 mil fotos, centenas de páginas de anotações e diálogos transcritos e horas de vídeo. Mas isso tudo precisa ser analisado.
Pra conseguir chegar no cerne de cada questão e poder definir padrões, é preciso procurar as causas fundamentais de cada comportamento, nesse caso, dos pacientes e dos enfermeiros. Primeiro vem os fatos observáveis, como a frequência da troca da bolsa e as inconveniências associadas diretamente a isso. Daí vem os hábitos e práticas que revelam o comportamento e escolhas. E, no centro, a causa desses hábitos e práticas.
Os insights desses hábitos e práticas e suas causas não são diretamente observáveis. Eles precisam ser deduzidos.
Pensando nisso, é possível entrar na intimidade dos pacientes. Como é a aceitação inicial de que você é um paciente crônico? Os hábitos e padrões mudam dentro de casa e fora dela? Como é a vida sexual dos pacientes?
A pesquisa mostrou que alguns pacientes se sentem frustrados, outros falaram de vergonha e estranhamento de parceiros sexuais, por exemplo. Muitos mencionaram o momento aterrorizante em que, num evento como um casamento ou reunião de negócios, perceberam que tinham um vazamento.
Aí vem o entendimento de que a vida dos pacientes fora do hospital é radicalmente diferente da vida dentro dele. Parece óbvio, né? Mas até então a Coloplast focava no hospital porque era lá que eles tinham muito controle dos dados.
Os pacientes no hospital estavam quase sempre abaixo do peso normal, deitados o tempo todo, com uma porrada de profissionais cuidando deles 24 horas por dia. Assim que eles chegavam em casa, vinha o choque: sem assistência, tendo que viver a vida normalmente de novo. Cicatrizes, pele flácida, hérnias, ganho de peso além do normal. Nada do que foi feito no hospital se aplicava à vida cotidiana.
E o tão temido vazamento. A Coloplast acreditava que tinha conseguido sanar esse problema. Mas o que acontece é que os pacientes assumiam que aquilo era normal e paravam de reclamar. Aquele era o novo normal dessas pessoas e elas moldavam suas vidas em torno dos vazamentos.
Depois do primeiro vazamento, os pacientes se tornavam cada vez mais reclusos. Dentro de dois anos, a maioria tinha parado completamente de sair de casa.
E então vem o quarto passo: os Insights Estratégicos.
Pensa: o grande trunfo da Coloplast até então era ter resolvido vazamentos. Eles descobriram com essa pesquisa que não resolveram nada. Analisando os dados com mais afinco, um padrão surgiu. Quase todos os profissionais de enfermagem responderam que não existe produto perfeito nesse caso porque não existe paciente perfeito ou “não existe o produto certo pra todo mundo”. Quase todos os pacientes responderam que tiveram problemas em garantir que a bolsa estava completamente encaixada e tentavam soluções caseiras que muitas vezes machucavam ou irritavam a pele, piorando o problema.
A lição aqui é que assim como uma pessoa podem sofrer com viés confirmatório, empresas inteiras também podem.
O adesivo da Coloplast funcionava perfeitamente em um corpo padrão, magro e uniforme. Mas a realidade é completamente diferente. Era um problema que ninguém numa indústria bilionária tinha pensado.
Isso leva ao quinto passo: Construir o impacto do negócio.
Um insight é inútil se ele não se traduz numa iniciativa. Os passos 1 a 4 são maravilhosos, mas eles são puramente uma construção para chegar até aqui: formular uma estratégia factível.
A estratégia no caso da Coloplast foi a mais direta possível: eles fizeram uma campanha pedindo para os clientes enviarem fotos de seus corpos de todos os ângulos possíveis para tentar chegar a quatro tipos básicos de corpo. Isso envolveu todos os departamentos da empresa: obviamente, o setor de marketing precisava convencer as pessoas a engajar e transformar isso numa história; o setor de atendimento ao cliente precisou criar um novo sistema de suporte ao paciente; os setores de manufatura, pesquisa e desenvolvimento precisaram criar novos produtos e novas técnicas para produzí-los.
A campanha obviamente foi um sucesso, e a Coloplast passou a crescer mais do que a média do mercado.
O processo de sensemaking e o uso das ciências humanas não são exatamente novos. Mas eles são mais importantes agora do que nunca.
Entender a fundo o seu consumidor é essencial por vários motivos. O primeiro deles é bem literal: o olhar mais humano aproxima a sua marca do consumidor, fazendo com que ele se sinta muito mais compreendido por você. Essa proximidade é uma das bases do conceito de flywheel, onde os clientes deixam de ser apenas consumidores e passam a ser amigos da marca, virando promotores. Isso reduz os custos de captação de novos leads, já que o próprio consumidor divulga seu produto ou serviço por você.
Além disso, com o fim dos cookies third party, as informações sobre o comportamento do seu cliente, que já eram escassas, se tornam ainda mais raras. Entender o consumidor sem precisar fazer malabarismo atrás de dados acelera muito não só a captação de novos clientes, mas a obtenção de insights que podem te ajudar a alavancar ainda mais o desenvolvimento de um produto melhor.