Os efeitos colaterais da ‘cultura familiar’ no trabalho
Não é segredo pra ninguém que fazer amizades no ambiente de trabalho é extremamente importante. Nós passamos um terço das nossas vidas trabalhando e tudo fica muito mais fácil quando a gente está cercado de pessoas que a gente gosta. Com isso em mente, pode até parecer que uma empresa que se diz uma família seja um bom lugar pra trabalhar. Infelizmente, como muita gente sabe, não é bem assim. Alguns aspectos da cultura familiar, como o respeito, empatia, cuidado e senso de pertencimento até podem ser bastante positivos. Mas esses valores familiares podem ser mais prejudiciais do que benéficos se a gente não tomar cuidado.
Como a cultura familiar pode ser prejudicial pros funcionários
Uma empresa, busca, obviamente, funcionários produtivos e de alta performance. Isso está intrinsecamente ligado à capacidade de trabalhar em equipe, na maioria das vezes. Se valer do conceito de cultura familiar, nesses casos, raramente surte algum efeito.
Os limites entre a vida pessoal e profissional que começam a desaparecer.
Antes de mais nada, é bom deixar claro que a palavra família tem significados completamente diferentes para cada pessoa. Nem todo mundo quer se conectar com os colegas de trabalho num nível mais profundo, muito menos criar uma dependência da empresa em que trabalham. No contexto profissional, um empregado quase sempre vai querer deixar detalhes pessoais do lado de fora da empresa.
Aí a gente entra no primeiro ponto. Quando todo mundo acha que tá entre família, esse tipo de conversa acaba sendo incentivada, mesmo que de maneira indireta, justamente porque o objetivo é encorajar uma socialização.
Diversos estudos mostram que o uso da metáfora da família nos negócios cria uma cultura positiva, motivadora, em que as pessoas deixam de se enxergar como colegas e passam a se enxergar de maneira mais fraternal. O problema é que isso cria uma dependência emocional e, com ela, vem um medo de causar atritos nas relações. Por um lado, os conflitos diminuem mas, por outro, a carga emocional aumenta e muita gente não sabe lidar.
Além disso, os funcionários passam a sentir que devem compartilhar tudo com seus superiores. Num ambiente presencial isso já é problemático. Mas é no virtual ou híbrido que as coisas pioram: Os líderes tendem a confiar menos quando não conseguem ver seus funcionários, gerando desconfiança. E, com isso, vem o microgerenciamento. Líderes que se acham no direito de ficar questionando o que seus liderados estão fazendo o dia todo, pedindo provas de que eles estão trabalhando. Como o liderado acredita que deve satisfação, ele acaba compartilhando mais da sua vida pessoal do que gostaria.
Um senso de lealdade exagerado que pode ser danoso.
Outra consequência que vem de maneira quase inconsciente é a lealdade desmedida. Quando uma pessoa da sua família precisa de ajuda, raramente você pensa duas vezes antes de ajudar. Transferindo isso pro ambiente de trabalho, a lealdade leva à expectativa de que o funcionário faça tudo que estiver ao seu alcance para cumprir uma tarefa. Parece ótimo quando a gente enxerga pelo lado do patrão, né?
A questão é que, óbvio, isso leva a uma exploração desmedida dos funcionários, pedindo que eles trabalhem muito além do saudável ou em projetos nada relacionados aos seus cargos. Afinal, é uma família, né? O outro ponto menos óbvio é que as pessoas tendem a tomar decisões menos éticas nesse tipo de ambiente, com medo de perder o emprego.
Quando se trabalha em um lugar assim, é só uma questão de tempo até a performance e a produtividade diminuírem significativamente devido ao burnout, levando a longas conversas que são quase puxões de orelha sobre o que fizeram de errado. Isso cria uma sensação de que o funcionário não fez a parte dele e decepcionou o resto da família. E, caso não se resolva rapidamente, é só questão de tempo até a cultura da empresa deixar de ser familiar e virar uma cultura baseada no burnout, atritos e funcionários pouco produtivos.
A dinâmica de poder em que os funcionários acabam sendo explorados.
Pensando pela lógica, se a empresa é uma família, os líderes assumem o papel dos pais e os liderados o dos filhos, certo? É perturbador, né? E fica mais perturbador ainda quando a gente lembra que nem todo mundo tem uma boa relação com os pais. E essas emoções invariavelmente vão entrar no ambiente de trabalho.
Essa dinâmica também tira a sensação de poder dos funcionários (afinal, os pais dão as ordens e os filhos obedecem). Os funcionários passam a agir de maneira muito mais passiva, sem saber quando questionar ordens e quando se impor. Esse cenário mina (e muito) a capacidade de inovação da empresa, além de tirar boa parte da personalidade do trabalho produzido.
Outro problema nessa relação é que, quando chega o momento de demitir alguém ou dar um feedback negativo, tudo fica muito mais complicado. Quase sempre, as coisas vão ser levadas pro lado pessoal, afinal, você não simplesmente demite um membro da sua família ou coloca ele num programa de reciclagem só porque a performance foi ruim. As pessoas esquecem que as relações de trabalho são temporárias e são contratos sociais muito mais impessoais do que uma relação familiar de fato.
E lembra que eu falei ali em cima que as pessoas tomam decisões menos éticas nesse ambiente familiar? Pois é, pra completar, quem vê um funcionário fazendo coisa errada rarissimamente denuncia. Afinal, quem dedura alguém da própria família, né?
Mas o que fazer, então, pra cultura familiar dar certo?
É mais simples do que parece: crie uma cultura positiva, saudável, evitando a mentalidade de família. Foque em ações e estruturas que tragam os valores e propósitos da sua empresa pra perto dos funcionários. Pegue tudo que tudo que tem de bom na cultura familiar (empatia, pertencimento, compartilhamento de valores e conquistas), mas deixe claro que o foco da empresa é performance, resultado. É isso que difere uma empresa agradável de uma família.
Deixe os limites (bem) claros.
E deixe os funcionários fazerem o mesmo. Quanto mais nebulosa a política da empresa, mais margem mal-entendidos. Faça com que os funcionários entendam o que se espera deles em termos de horas de trabalho, resultados, cultura e dê o suporte para que seus funcionários se sintam acolhidos e seguros.
Com isso, os funcionários também se sentem mais confortáveis para se impor quando necessário e estabelecer limites. Isso é saudável e deve sempre ser encorajado (mas sem perder o respeito).
Defina os focos da empresa e, principalmente, as metas.
Na hora de criar um time novo ou trazer um funcionário novo pra dentro, deixe claro que aquilo ali é um ambiente de trabalho, e não uma família. Tenha certeza de que os funcionários entenderam, desde o primeiro momento, quais são as atribuições deles, o que se espera e quais os limites entre vida pessoal e profissional.
Um passo extremamente importante aqui são as famosas one-on-one (ou X1, aqui na Traction). Essa é a hora que ambos os lados deixam claras suas frustrações, inseguranças, conquistas e próximos passos. É a hora em que o funcionário precisa se sentir confortável pra falar tudo o que quer e sanar todas as dúvidas.
Mais uma vez, se as coisas começam a ficar incertas aqui, garanta que tudo volte a ficar claro e não deixe nenhuma dúvida pairando no ar.
Por fim, mas não menos importante: deixe claro que aquela é uma relação temporária e profissional.
A gente precisa ser realista sobre as relações de trabalho. Elas raramente duram a vida toda e tá tudo 100% ok. Conforme uma empresa cresce (ou um funcionário cresce mais do que a empresa comporta), os cargos mudam, o salário muda, tudo muda. Deixe isso claro e seja direto quanto a isso.
Não leve pro lado pessoal se a empresa te mandar embora se você for funcionário. Não leve pro lado pessoal se um funcionário decidir sair, se você for um líder. Reforce a ideia de que ambos se ajudaram e siga em frente.
Um laço familiar é profundo demais pra se confundir com uma relação profissional e isso definitivamente não é o ideal. Então deixe de lado a ideia de família e foque em criar um ambiente (profissional) em que as pessoas queiram estar.